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Crónicas, contos e confissões de uma solteira gira e bem resolvida que não cumpriu o papel para o qual foi formatada: casar e procriar. Caso para cortar os pulsos ou dar pulos de alegria? Provavelmente, nem uma coisa nem outra!
Viva!
Hoje quero falar-te sobre um assunto um tanto ou quanto desagradável, daí que te aconselhe a estar preparada para o tom mordaz que aí vem. Às "minas" que se sentem ofendidas, chocadas, ultrajadas ou melindradas quando se apercebem que "alguém" as deseja sexualmente só tenho a dizer o seguinte: parem de frescuras que desejar não é pecado, menos ainda crime.
Antes de prosseguir, saliento que a palavra alguém levou aspas precisamente para que seja possível associá-la à criatura humana por quem não se sente o mais pequeno desejo sexual.
Retomo a operação Bora desencardir mentes, sem anestésicos nem analgésicos, para dizer que, por mais desgusting que possa ser esse desejo que sobre nós recaia, ele nada mais é do que uma emoção alheia sobre a qual não detemos nenhum controlo. Abro aqui um parêntesis para uma pequena contextualização do termo "emoção". De acordo com a ciência da mente, uma emoção é um conjunto de respostas químicas e neurais que surgem quando o cérebro recebe um estímulo externo. No caso do desejo sexual, deverá ser um ou mais atributo físico a despoletar essa emoção.
Este princípio de que não é crime "sentir" emoções aplica-se a toda espécie de desejo que imaginar se possa: 'sexar', matar, roubar, maltratar, ferir, injuriar, violentar, trair, prejudicar e por aí fora. O desejo de um pedófilo por uma criança, o de um psicopata por uma vítima, o de um canibal por carne humana, o de um clérigo por sodomia, o de um chefe por um subordinado, o de um progenitor por um filho, o de um colega por outro colega ou o de um cônjuge por outra pessoa qualquer, por mais que sejam – e são, na maioria destes casos que acabei de citar – moralmente reprováveis, aos olhos da lei, não configura crime.
O destino que se dá a esse desejo é que pode sim configurar crime. Ou seja, a infração dar se á a partir do momento em que aquele que deseja resolve agir sem se atentar ao disposto no código ético, moral e/ou penal. Para que não restem dúvidas, com este exemplo troco por miúdos: um indivíduo desejar ter sexo com uma criança não é crime, ainda que seja moralmente condenável. Esse mesmo indivíduo ter sexo (ou qualquer outro tipo de intimidade física previsto na lei como abuso sexual de menor) é considerado crime, punível com até não sei quantos anos de prisão, dependendo da gravidade do caso.
Por mais desagradável que possa ser – e sei por experiência própria o quanto pode – saber que alguém nos deseja não deve ser motivo para drama, quando muito para algum desconforto, perfeitamente expectável e legítimo. Como ficou explícito mais acima, o desejo é uma caraterística intrínseca à condição humana, pelo que nada nem ninguém é capaz de inibi-lo. Até porque o nosso cérebro não se deixa controlar, nem mesmo pelo seu próprio portador. Já que não nos é possível controlar a emoção alheia, neste caso concreto o desejo alheio, porque não optar por controlar a nossa própria reação? A meu ver, não dar importância ou simplesmente ignorar será a melhor forma de lidar com situações do género.
Desgastarmo-nos com algo que não controlamos é altamente contraproducente e emocionalmente desgastante. Por mais que a revolta e o asco se apessoem do nosso espírito quando somos fustigados por olhares dardejantes por parte de alguém por quem nutrimos desejo sexual zero, a verdade é que não existe enquadramento legal para qualquer tipo de denuncia. Agora se esse desinfeliz tiver a audácia de verbalizar esse desejo, quer por palavras, gestos ou atos, o caso muda completamente de figura.
Moral da estória: assim como amar não é pecado, desejar também não. Pelo menos até se passar da intenção à ação.
Por hoje é tudo. Hasta la vista baby!
Viva!
Meio a brincar meio à séria, quantas vezes não ouvimos – e replicamos – que só é assédio quando o gajo é feio? Por outro lado, quantas vezes não ouvimos tiradas tão foleiras que ficamos absolutamente sem reação tamanho o choque e a vergonha? É por isso que pergunto se saberemos nós (homens e mulheres) identificar a linha que separa o piropo elogio do piropo crime? Afinal, até que ponto podemos considerar o piropo um crime? É precisamente sobre todas estas questões que se debruça esta crónica.
Reza o artigo 170.º do código penal que "quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias..." A moldura penal agrava-se no caso da importunação sexual ser cometida sobre menor de 14 anos.
Desde agosto de 2016, que os piropos – aquelas "bocas" que todas nós mulheres, desde a mais tenra idade, ouvimos – têm, pelo seu caráter de "propostas de teor sexual", relevância criminal, ou seja, são considerados crime, mais concretamente crime de importunação sexual. Atenção que a lei ressalva que apenas os piropos que são propostas de teor sexual são criminalizadas.
"Bocas" do tipo "és como um helicóptero: gira e boa"; "ainda dizem que as flores não andam"; "só a mim é que não me calha uma destas na rifa"; "diz-me lá como te chamas para te pedir ao Pai Natal" ou "acreditas em amor à primeira vista ou tenho que passar por aqui outra vez?" não são, aos olhos da lei, consideradas crime, uma vez que não expressam conteúdo sexual. Já as do tipo "deves ser boa naquilo", "tens uma boca de broche", "tu queres é levar com ele", "comia-te toda" e outras mais explícitas, são consideradas crime e podem ser denunciadas por qualquer cidadão que presencie o ato.
Aquando da discussão da lei, já lá vão quase três anos, a pergunta que quase todos se fizeram foi se fazia sentido incluir expressamente os comentários de teor sexual no crime de importunação. Muitos foram os que na altura consideraram a medida um exagero, um atentado contra o status quo cultural, contra a liberdade de expressão e por aí fora. Para alívio das mulheres, sobretudo das mais jovens, o legislador foi categórico no enquadramento, afirmando taxativamente que "todos os comentários que sejam afirmativos, e incluam teor sexual, implicando fazer qualquer coisa sexualmente" são passíveis de figurarem crime de importunação sexual.
Ainda que consistentemente satirizada como "exagero", "histeria feminista" e até "fim da sedução", o facto é que a criminalização do assédio sexual, quer na rua quer no trabalho, foi aprovada e está aí para "enquadrar" os idiotas que acham que podem dizer ordinarices a uma mulher só porque sim.
Pessoalmente, sempre abominei de morte os piropos, sobretudo os vindos de desconhecidos a quem nunca reconheci legitimidade para tal. Por ser portadora de atributos físicos muito cobiçados pelo sexo masculino (lábios carnudos, nádegas salientes, peito cheio e cintura fina, sem falar na cor da pele), ouvi coisas que me fizeram sentir pior que uma boneca insuflável. E o facto de nada puder fazer para evitá-los era-me ainda mais revoltante. Se reclamasse, quase certo que receberia de volta insultos e, provavelmente, ordinarices ainda mais ferverosas. Daí que a única solução sensata era fingir que não tinha ouvido, apressar o passo e afastar sem olhar para trás.
O que a lei veio estabelecer – tardiamente, diga-se de passagem – é que agora não temos que passar por isso, a não ser que queiramos, claro. Agora temos voz, agora temos arma para combater uma luta até então desigual, agora temos como responder à letra: denunciando às autoridades competentes.
Agora deixamos de ser impotentes para passarmos a ser importantes. Agora a nossa dignidade, o nosso sentimento e a nossa feminilidade importam. Agora, somos pessoas e não objetos sexuais à mercê da libido e da cobiça alheia. Agora só leva com piropos quem quer!
Viva!
Sei que hoje não é dia de nos encontrarmos, mas é que há pouco aconteceu-me uma que não consigo deixar para contrar amanhã ou depois. Se não escrever sobre isso já acho que sou capaz de explodir. Deixa-me só respirar fundo, tomar um (bom) gole de água que já te conto tudo.
À hora do almoço fui ver um quarto que fica na esquina da Artilharia 1 com a Joaquim António de Aguiar. Seguindo as instruções da pessoa com quem falei ao telefone 15 minutos antes, subi de elevador até o 5º andar. Chegada lá dei de caras com uma jovem negra a limpar o hall de entrada e uma senhora loira, ladeada por um rapaz na casa dos 30, que vim a saber pouco depois tratar-se do filho.
Fui convidada a entrar na casa, não sem antes ter-me apresentado e estendido a mão em jeito de cumprimento. Reparei que a senhora me olhou dos pés à cabeça de uma forma nada discreta, mas como estou habituada a que me tirem as medidas e reparem nas minhas vestes, não liguei muito. Só depois viria eu a perceber o porquê daquele olhar.
A senhora, a beirar os 60, mandou-me sentar enquanto ia buscar "onde tomar notas". Quando voltou, munida de papel e caneta, pediu-me que lhe recordasse o meu nome. "Sara", respondi-lhe com gosto, após o qual perguntou-me a idade e o telefone. Bem que estranhei aquelas questões todas, inéditas neste tipo de situação, mas pensei para comigo que deveria ser uma forma de ela depois se organizar e decidir qual o melhor candidato ao alojamento. Nisto, pergunta-me o que tinha na cara (as borbulhas mutantes voltaram ao ataque, para desgosto meu). Lá expliquei que, quando sob stress e ansiedade, ficava com borbulhas, ao que ela retorquiu que era psoríase. Intrigada com a abordagem, deveras despropositada e inconveniente, lá expliquei que se tratava de um descontrolo hormonal, ao que ela volta a diagnosticar como psoríase. Sabendo eu que não era de todo psoríase, perguntei-lhe delicadamente se era dermatologista, ao que retrucou: "Não sou, mas percebo do assunto!", para depois acrescentar que não era contagioso, portanto escusava de ficar preocupada (no comment).
Nisto, interrompe-a o filho para lhe pedir que vá até à cozinha porque ele acabou de entornou algo (no comment, again). Depois de explicar ao marmanjo de 1,80 que estava ocupada – como se não fosse óbvio – volta ela a concentrar-se na minha cada vez mais perplexa pessoa, deste feita para saber onde morava. Depois disso, se eu estava a trabalhar e qual o horário. Quando lhe disse, cada vez mais intrigada, "horário normal, de segunda a sexta, das 9 às 18", sai-me ela com esta:
- “Como vai trabalhar para mim se já trabalha noutro sítio?”
- “Desculpe, não percebo a sua pergunta”, balbuciei eu com ar de tótó.
Repete ela:
- “Como vai trabalhar para mim se já tem trabalho?”
Ao que eu respondo:
- “Mas eu não vim procurar trabalho, vim ver o quarto!”
Ela:
- “Ahhhh! É que eu pus dois anúncios, um para o quarto e outro para empregada e eu pensei que a Sara veio para a entrevista de empregada!”.
Ainda que de salto alto, saia charuto e blusa de seda, o lugar da preta será sempre na área de serviço. Mais não digo que ainda estou a digerir a coisa!
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