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Crónicas, contos e confissões de uma solteira gira e bem resolvida que não cumpriu o papel para o qual foi formatada: casar e procriar. Caso para cortar os pulsos ou dar pulos de alegria? Provavelmente, nem uma coisa nem outra!


black-lives-matter-1011597_1920.jpgViva!

Por mais que deseje que assim fosse, o racismo não nasceu nem vai morrer com o caso George Floyd. Este é tão-somente o mais recente (e, provavelmente, um dos mais revoltantes) episódios de uma saga, cujo tempo de antena já não se justifica, cuja realidade deveria ter perdido há muito o seu lugar na história da humanidade, cuja batalha escusava o mundo de estar a enfrentar neste momento de tamanha vulnerabilidade, incerteza e incapacidade.


Na qualidade de membro da tribo mais fustigada por este cancro social (sem cura à vista, há que assumir), assumo que o racismo está tão enraizado nas sociedades - em umas mais do que em outras, é certo - que são precisos episódios como este de Minneapolis para que nos lembremos de que estamos longe de vencer esta guerra; se é que isso algum dia acontecerá.
 
Racista não é só aquele que chama "preto" ao africano, não é só aquele que diz "vai para a tua terra", não é só aquele que diz que prefere morrer a ter um neto "de cor", muito menos aquele que se refere aos negros como "macacos". Racista é, na sua essência, aquele que acha que não é, pois ao achar que não é, não vê motivos para mudar a sua perceção, erradicando assim da sua crença a convicção de que o valor das pessoas varia consoante a cor da pele ou os traços fisionómicos. Racista é aquele que, no alto da sua prepotência, apregoa que o racismo não existe.
 
O racismo existe sim! Trata-se de uma realidade transversal a todos os países, com Portugal a não ser uma exceção. Eu mesma aqui testemunhei, no post Quando pensamos que o racismo é coisa do passado há sempre alguém para nos lembrar do contrário, o quão utópico é acreditar que neste país essas coisas não acontecem. Talvez não aconteçam com a mesma regularidade, vulgaridade e gravidade como nos Estados Unidos, mas convém não esquecermos os casos da Cova da Moura ou do Bairro da Jamaica, só para citar os mais flagrantes. A esses deu-se destaque na opinião pública. E aos outros, àqueles que acontecem todos os dias e dos quais, muitas vezes, nem as próprias vítimas se apercebem?
 
Estes três casos, publicados na edição de março de 2019 da Vogue Portugal, ilustram – e de que maneira – aquilo que acabei de referir:

Amélia candidatou-se a um emprego numa instituição bancária. Como não pôs a fotografia no currículo, acabou por ser contratada, depois de passar por um processo de seleção. Percebeu na entrevista final que o chefe tinha ficado de pé atrás, e um dia tomou coragem e perguntou-lhe diretamente se tinha a ver com o facto de ser negra. Frontal, ele assumiu que sim, justificando que o banco tinha como política não contratar nem negros nem brasileiros, e que se ele tivesse visto a sua fotografia antes, ela não seria selecionada.
 
Mamadou tentou durante meses arrendar uma casa no centro de Lisboa. Nunca conseguiu. Por ter sotaque, à custa da sua origem senegalesa, ao entrar em contacto com o proprietário, levou sempre com a promessa de que receberia mais informações por SMS. Ao tuga de gema, com sotaque lisboeta, que ligava imediatamente a seguir, davam logo a morada, por telefone ou por SMS.
 
William, estudante de arquitetura em Londres e de férias em Lisboa, deixou a mãe à porta de casa para ir estacionar o carro. Sem nada fazer, foi mandado parar por dois polícias e levado para a esquadra. O argumento para tal? Uma carta de condução que os agentes insistiam que não era. Ele não teve dúvidas sobre a única razão de ter sido considerado suspeito: era castanhinho.
 
Inocência, professora doutorada na Faculdade de Letras de Lisboa, estava no Hospital de Santa Maria quando perguntou a uma enfermeira onde ficava um certo serviço. "Está ali indicado na placa, sabe ler?", foi a resposta que obteve.
 
Estes são apenas alguns, de entre incontáveis, histórias do Portugal de hoje. Pequenas amostras de um fenómeno muito mais colossal e transversal do que a maioria quer revelar ou reconhecer. A ponta de um icebergue, cuja dimensão e profundidade poucos de nós se sentem preparados para encarar, aceitar, lidar e lutar.
 
Termino reforçando que black lives matter sim, tal como todas as outras, e que só existe uma raça: a humana!

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18 comentários

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De Mamã Gansa a 04.06.2020 às 20:58

Infelizmente sim ainda é uma realidade em muitos países e o nosso não é exceção. Em relação ao caso da Inocência,não me leves a mal, mas já me fizeram o mesmo. O Hospital de Sta Maria é gigante tinham-me dado as informações erradas, eu com o Gonçalo pela mão ( que já estava a entrar em crise) perguntei indicações e deram-me a mesma resposta. Valeu-me um jovem médico negro ( só acrescento a cor porque é o tema do post) que com muita paciência e boa disposição me ajudou a tirar o Gonçalo do chão ,que entretanto entrara em crise, e estava a piorar porque uma velhota se estava a meter com o Gonçalo e eu estava farta de pedir à senhora que se afastasse, porque só piora a situação. Ele viu o que se passava, perguntou-me o nome do meu filho, falou com ele em tom de brincadeira e como que por magia, o meu filho acalmou-se e levantou-se, enquanto a mulher se afastava, a pedir desculpas, quando me ouviu informar o jovem que o meu filho tem autismo. Podia só ter ficado pelas placas e pelas indicações, mas conto-te o ocorrido porque primeiro ( se já não fosse comprometida e fosse mais jovem acho que ficava com vontade de me perder mais vezes ) mas também porque acho que regra geral a maioria das pessoas negras são muito mais inclusivas e atentas a questões de discriminação. Beijinhos.
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De Sara Sarowsky a 05.06.2020 às 09:33

Mamã Gansa, ainda que seja suspeita para falar, concordo contigo quando dizes que os negros são mais inclusivos e amigáveis. Pela minha experiência, isso deve-se ao facto de termos estórias de vida difíceis (ninguém que sai da sua terra para ir buscar melhores condições de vida em terra alheia, pode gabar-se de ter uma vida fácil. O sofrimento, a privação, o afastamento das raízes, a saudade e outros fatores tornam-nos (mais) humildes, e é essa humildade que nos faz ser o que somos.
Fico grata pela tua partilha, uma mais-valia no olhar sobre esta questão.
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De Anónimo a 05.06.2020 às 14:40

Mas será que o racismo é só contra os pretos?
E contra os brancos não há racismo.
A hipocrisia é muito forte.
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De Sara Sarowsky a 05.06.2020 às 14:48

O racismo inverso é algo sobre o qual não tenho como opinar. Só um branco, coisa que não sou, para dizer se isso existe. O que posso dizer é que no meu país não existe racismo contra os brancos. Pelo contrário, são discriminados positivamente em relação aos próprios "pretos". Motivo pelo qual dói tanto a maneira como nos tratam nas suas terras, quando nas nossas são tratados como lordes.
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De Mamã Gansa a 05.06.2020 às 16:16

Eu nunca fui a Cabo Verde, mas vivi com pessoas Cabo Verdianas quando vivia num quarto alugado, não senti racismo nem da parte das pessoas que viviam comigo , nem da parte dos amigos e amigas que frequentavam a casa. Se existe o inverso existe, mas falou em minorias. Se existe racismo entre negros de países ou de etnias diferentes também existe. Mas a questão aqui é o racismo contra as pessoas pela cor da pele, neste caso contra os negros.
E quer gostemos ou não o preconceito ainda é muito, caso contrário não seria necessário o argumento de que existe racismo contra os brancos.
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De Sara Sarowsky a 05.06.2020 às 16:24

Falou e bem ! A Mamã é que sabe
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De Nuno a 05.06.2020 às 16:44

O racismo contra brancos NÃO EXISTE. Sou branco. Só alguém que não tem noção que é privilegiado é que pode colocar essa hipótese. A minha cor de pele permite-me sair de casa sem sequer pensar em problemas raciais. Gostava que fosse assim com todas as cores.
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De Sara Sarowsky a 05.06.2020 às 16:57

Nuno, a tua partilha é de uma honestidade e humildade pouco comum em situações como estas. Muito grata por este esclarecimento, que só merece um "Viva!"
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De Anónimo a 05.06.2020 às 15:25

Não será a sua visão de racismo uma visão racista? Quer exemplos de racismo contra brancos? Vá a esses bairros das ditas minorias étnicas, vá a África e nem imagina quantas vezes vai ouvir branquelas, aqui não mandas nada, vai para a tua terra... Hipócritas!
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De Sara Sarowsky a 05.06.2020 às 16:22

Volto a frisar: na minha terra nunca vi ou ouvi nada do género. E desafio quem quer que seja a contradizer-me. Quanto a "esses bairros das ditas minorias étnicas" - o que em si já é uma demonstração de racismo, digo-lhe já -, não sei o que por lá se passa, pois não costumo frequentar. Eu falo apenas do que conheço. É provável que exista racismo do negro para com o branco, eu é que não conheço essa realidade. O povo cabo-verdiano, do qual tenho muito orgulho em fazer parte, trata o branco até melhor que o seu compatriota.
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De Mamã Gansa a 05.06.2020 às 16:05

Parabéns pelo destaque bem merecido!!!!
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De s o s a 06.06.2020 às 00:50

depois de ler o post, fiquei sem saber qual o pior racista, qual o racismo que agride mais.

Mas concordo que negar o racismo , excepto nos casos em que a afirmaçao é meramente simploria, é a confirmaçao do racismo.

Existem dois ou mais tipos de racismo : a tolerancia por um lado, e a segregaçao pelo outro. Ou seja, um individuo indiferente, tolerante, poderia tornar-se num outro individuo se tivesse que tomar decisoes.

Portanto, nenhuma duvida de que o racismo existe, porém em termos de escolha, entre admitir uma idosa e uma jovem, nao hesitava.
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De Sara Sarowsky a 06.06.2020 às 10:21

Qual o pior racista? Venha o diabo e escolha 😉
Acredito que quanto mais se falar sobre isso, mais hipóteses teremos de “desencardir” mentes.
Muito grata pelo teu achega 🙏🏾🍀
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De lopespensamentos a 06.06.2020 às 09:17

Fala-se muito em racismo contra negros, mas ninguém refere a discriminação contra os ruivos. Desde sempre fui olhada de lado, com desdém por ter a pele muito branca e com sardas. Na minha opinião, as pessoas criticam tudo o que elas consideram normal. Por isso, gordos, ruivos, negros... são todos vítima de discriminação.
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De Sara Sarowsky a 06.06.2020 às 10:20

Essa é novidade para mim, pois a-d-o-r-o gente ruiva, a meu ver, as mais especiais de todas.
No teu caso, trata-se mesmo de racismo ou descriminação? É que são coisas diferentes. Penso que tens sido vítima de discriminação por seres diferente e não vítima de racismo por teres uma cor de pele diferente.
Muito grata pelo teu testemunho 🙏🏾🍀
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De Momentodedivagar a 06.06.2020 às 10:08

Olá, pois é o racismo existe e infelizmente vai continuar a desistir. Sou branca, o meu marido e negro. O meu filho tem sofrido coisas na escola que eu pensei nunca ser possível. Dos meninos de boas famílias até ao menino que e da mesma cor que ele mas não a assume todos tem um nome a chamar lhe. E ele não compreende porque não vê cor em nós. Vê pessoas. Pergunta me mãe porque e que as famílias na TV não são como nos?! Desde a polícia mandar parar, a irmos ao supermercado e andarem atrás de nós. Sim porque mesmo que o meu marido não esteja sou a mulher do preto. Ele e discriminado pela cor e eu por ser mulher dele. É triste e espero que os meus filhos consigam gerir isto ao longo da vida sem se revoltarem. um beijinho
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De Sara Sarowsky a 06.06.2020 às 10:15

É deveras inacreditável e lamentável. Sinto mesmo muito que tenhas que passar por isso, em pleno século XXI.
A minha sobrinha também é mestiça e, apesar de não sofrer propriamente de racismo, é chamada de “marron” pelos coleguinhas na creche. 😞
E ainda há quem teime em achar que o racismo não existe. Sempre existiu e sempre existirá, umas vezes camufladas, outras descaradas. Grata pelo teu testemunho, meu bem.
🙏🏾🍀

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