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Crónicas, contos e confissões de uma solteira gira e bem resolvida que não cumpriu o papel para o qual foi formatada: casar e procriar. Caso para cortar os pulsos ou dar pulos de alegria? Provavelmente, nem uma coisa nem outra!
Viva!
Escrevo-te, em pleno domingo de jejum (já vou na 20ª hora sem por nada no estômago), para te comunicar que 15 anos depois de um casamento, perfeito nos 10 primeiros, estremecido nos últimos três e moribundo nos restantes dois, divorciei-me definitivamente da night.
Sacramentei esta minha decisão esta madrugada, após uma noitada que passarei a descrever tout de suite. Depois de um jantar de aniversário de uma amiga próxima, o grupo saiu para a naite. Confesso, que quanto a isso estive reticente desde o primeiro instante, não só por saber que o meu sentimento por ela estava por um fio, mas sobretudo por prever mais do mesmo, ou pior do mesmo, como foi o caso. Numa derradeira tentativa de last chance, lá resolvi pagar para ver.
No bar/discoteca lá para as bandas do Cais do Sodré, de nome Titanik sur mer (sugestivo q.b.) para onde fomos, dei por mim tiritando de frio – culpa do vestido curto, sandálias e casaco totalmente inadequado aos 15 graus que se fazia sentir na rua – e assolada por duas palavras: decadente e casa.
Decadente observar aquelas pessoas todas a fumarem tal e qual as chaminés das fábricas chinesas; e, pior, eu a inalar todo aquele ar tóxico. Decadente vê-las a consumirem álcool e drogas como se as suas vidas se resumissem àquelas poucas horas, num claro sintoma da necessidade de anestesiarem o vazio daquele momento. Decadente assistir às tentativas patéticas de alguns em engatar o que lhes aparecia pela frente, num sinal de profundo desespero por uma companhia que lhes permitisse fintar a sua solidão. Decadente o quanto a miséria humana está presente na vida da maioria dos comuns mortais. Decadente estar no meio deles, como se de um deles eu me tratasse.
Casa era onde queria estar. No conforto do meu lar, na macio do meu leito e no sossego da minha companhia. Aquilo tudo causa-me um mal enorme ao corpo, mas sobretudo à alma. Não queria estar ali, não queria estar rodeada por aquelas pessoas – mal conseguia olhar para elas, quanto mais respirar aquele ar contaminado de nicotina, cannabis, álcool e súor. Abro aqui um parêntesis para perguntar o que foi feito daquela lei que proibia fumar em espaços fechados, inclusive os de diversão noturna.
Só conseguia pensar na noite de sono que estava a perder, no quanto estaria a forçar a coluna (tanto tempo em pé de saltos é uma espécie de automutilação a que nós mulheres nos sujeitamos voluntariamente em nome da vaidade), no quão maléfica seria aquela fumarada para os meus pulmões, pele, olhos e garganta e no quão ocas eram as conversas que me chegava aos ouvidos.
Só conseguia pensar: "Sara que estás aqui a fazer?". E nem o facto de estar rodeada de pessoas com quem me dou lindamente era capaz de atenuar a minha agonia, atroz a cada minuto que passava, ao ponto de se tornar insuportável. Pior que isso era ter que fingir para elas que estava minimamente na onda. Estou certa que não fui bem sucedida nessa intenção. Elas, cortês e generosamente, bem que disfarçaram o desconforto que a minha no vibe impactava no grupo, ao ponto de passarem a ignorar a minha presença, excluindo-me das conversas e das coreografias.
Não as censuro, apesar de ter ficado sentida. O alter ego é algo no qual tenho estado a trabalhar, mas cuja procissão ainda vai no adro.
Ao fim de mais de três horas, lá arranjei coragem e bom senso para verbalizar o que todas do grupo já adivinhavam: eu iria embora para casa. Perante o meu comunicado, uma delas ainda esboçou um tímido argumento a favor de esticarmos a noite. Contudo, era notório que sabia ela, tal como as restantes, que pouco mais havia a dizer ou fazer. Assumo que até foi um alívio para elas não ter que levar com a emplastro de plantão para o Plateau, a próxima paragem da madrugada.
Resta às protagonistas deste episódio o consolo de que todas as partes envolvidas ficaram felizes com a minha saída prematura de cena. Eu, mais do que elas, sem dúvida nenhuma. O mais intrigante é que eu fui frequentadora assídua da noite. Desde os meus 20 anos, quando aqui cheguei para estudar e me tornei dona absoluta do meu nariz, que saía religiosamente duas vezes por semana, com ou sem companhia, fizesse chuva ou sol, fosse inverno, primavera ou outono. No verão, e nas pausas académicas, esse valor atingia o pico de sete saídas por semana. Durante 15 anos foi essa a minha vida. Ficar em casa à noite era uma tortura, sendo assaltada pela ideia de que estava a perder a vida que lá fora se desenrolava. Ficava doente se perdesse uma paródia.
Que eu venho amadurecendo mais e mais nos últimos tempos, sobretudo de há três anos a esta parte, é flagrante. Agora resta-me saber se este meu amadurecimento encontra-se dentro dos padrões considerados normais ou se ele passou do ponto, perigando para a velhice social.
Seja lá qual for o diagnóstico, a verdade é que já não me apraz saídas noturnas que tragam a reboque poluição sonora, indivíduos ébrios e/ou dopados, ar impuro, conversas estéreis, encontrões/pisadelas, lavabos imundos, etc. etc.
Antes, uma boa noite de sono, um bom jantar num restaurante decente, um serão caseiro na companhia de pessoas que acrescentam valor, um bom filme, uma boa meditação, uma boa leitura, uma boa conversa, uma boa hora no ginásio, uma boa caminhada, uma boa sentada num sítio tranquilo, um bom por do sol, uma boa música, um bom concerto, mas acima de tudo, a minha própria companhia.
Estou viciada em mim, admito! E ao contrário do que muitos possam pensar, não estou deprimida nem nada que se pareça. Aliás, nunca me senti tão bem com tão pouco que fazer fora de portas e com tão poucas pessoas ao meu redor. Apercebi-me, e aceitei, que sentir-me bem – feliz, estimada e em paz – não passa por estar na companhia dos outros, mas tão somente por mim, pelos meus pensamentos, pelas minhas expectativas. Estar rodeada de pessoas pouco ou nada tem a ver com sentirmo-nos acompanhados, desejados, amados ou mesmo importantes. Quando temos cá dentro o que nos faz bem, é perda de tempo procurar lá fora.
Nos últimos tempos andei fixada (quase a pender para a obsessão) em encontrar um homem que me ame, deseje, valorize e tudo o mais que se costuma fantasiar numa relação a dois. Hoje, é-me evidente que esse alguém estava o tempo todo ao alcance da minha perceção. Esse alguém estava à distância do meu amor próprio. Esse alguém ninguém mais é do que moi même.
Em questão de semanas duas pessoas sem nenhuma correlação, disseram-me algo do género: "Como esperas amar o outro, se não sabes amar-te a ti mesma"? Diz-se que amamos como fomos amados. Pois, a mim nunca me ensinaram a amar. A minha família, especialmente a minha progenitora, nunca o fez. Muitos do meu círculo de amizade a quem dediquei devoção absoluta também não. A maior parte dos colegas de escola, faculdade e trabalho, menos ainda.
Envolvia-me, over and over again, em relações tóxicas e desequilibradas, nas quais dava sempre mais do que recebia. Em completa desigualdade de comprometimento afetivo, dava-me demais, servia demais, aturava demais, perdoava demais, na mesma proporção em que aceitava de menos. A insana convicção de que se assim fosse iriam amar-me mais e melhor justificava essa minha postura nas relações de amor, mas essencialmente nas de amizade.
Quanta ingenuidade. Quanta carência. Quanta subserviência. Quanta falta de valorização. Quanta ausência de amor próprio. Aos poucos, e à custa de incontáveis desilusões, fui aprendendo a direcionar o foco do meu afeto. Aos trancos e barracos cheguei a uma fase da minha vida em que caminho a passos largos para o autoamor pleno. Ao ponto de me estar a tornar egoísta, individualista e territorialista. Para isso muito tem contribuído o ho'oponopono do amor próprio, uma poderosa meditação "receitada" pela minha guru espiritual para que eu possa reavivar ou encetar uma linda, saudável e eterna estória de amor com o meu próprio eu.
É por tudo isso que esta crónica cumpre o (doloroso) dever de formalizar esta minha disjunção com a noitada, quiçá por estar ciente de que, uma vez tornada pública, ela assumirá um caráter vinculativo, salvo uma ou outra exceção, devidamente salvaguardadas em contrato.
E por hoje fico por aqui que o post já vai extensíssimo. Bom resto de domingo e até breve!
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