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Crónicas, contos e confissões de uma solteira gira e bem resolvida que não cumpriu o papel para o qual foi formatada: casar e procriar. Caso para cortar os pulsos ou dar pulos de alegria? Provavelmente, nem uma coisa nem outra!
Viva!
Hoje quero abordar um assunto que tenho vindo a adiar, com receio de que o discurso acabe por revelar-se demasiado inflamado, logo demasiado propenso a ferir suscetibilidades, precisamente o tema desta crónica.
Não é de hoje que acuso um enorme desconforto e alguma revolta (porque não assumi-lo?) cada vez que me chegam aos ouvidos relatos de acusações de racismo, que, nos dias que correm, parecem estar a fazer escola. Acusa-se alguém de racismo por tudo e por nada. A forma leviana e inconsequente com que se tem dado uso ao termo está a prejudicar despudoradamente o racismo na sua génese. Com isso quero deixar claro que muitas das atuais acusações de racismo mais não têm feito que roubar protagonismo a verdadeiros casos onde este é gritante, alarmante e incapacitante.
Para que entendas bem aquilo a que me refiro, cito o caso do chefe do governo canadiano, Justin Trudeau, que há poucos dias viu-se envolvido numa enorme polémica despoletada pela divulgação de uma fotografia em que, numa festa temática sobre noites árabes, aparece de turbante e com a cara escurecida.
Tendo acompanhado desde a primeira hora toda a celeuma à volta do assunto, continuo sem atinar com o cerne da acusação, segundo a qual "pintar a cara de castanho ou negro, o blackface/brownface, era comum em espetáculos do século XIX e contribuiu para a propagação de estereótipos sobre a população negra ou de pele escura."
Como é que o facto do Trudeau ter aderido ao espírito de uma festa temática, incorporando na perfeição uma personagem – que foi exatamente assim que interpretei a coisa, e graças a Deus que não fui a única – pode ser considerado racismo, ao ponto deste se vir obrigado a pedir desculpas publicamente? Se formos por aí, um branco que usa tranças ou uma branca que anda com um "black" podem dar azo a acusações de racismo. Afinal, estariam a apropriar-se de algo exclusivo ou identificativo de uma raça que não a sua.
Voltando ao caso do governante canadiano, o mais hilariante é que os primeiros a apontarem o dedo foram pessoas brancas e não aqueles que tinham toda a legitimidade para o fazer: os de pele escura. Acaso, perguntou-se aos supostos "visados" se se sentiram vítimas de racismo? Agora pergunto eu: e se fosse o contrário? Um negro fantasiado de caucasiano, com a cara pintada de branco, configuraria racismo? Ou será que o racismo é uma estrada com várias vias num único sentido?
Ao que parece o racismo só é considerado válido quando é o branco que "se apropria" de alguma caraterística ou símbolo de outra raça, etnia ou cultura. Porque quando se dá o oposto não é costume alguém vir bradar para a esfera pública que se está a cometer racismo. E olha que tenho autoridade na matéria para me pronunciar. Na qualidade de negra, orgulhosa de uma mentalidade aberta e de um espírito tolerante, afirmo que não me revejo na maior parte das acusações de racismo que tem vindo a público.
Por experiência própria posso dizer que a esmagadora maioria das pessoas não faz a mais pálida ideia do que é racismo, menos ainda do que é ser vítima dele. Racismo é, por exemplo, não seres selecionado para um emprego – apesar de seres claramente o candidato mais adequado – porque a empresa não quer pessoas "diferentes" em lugares de destaque; isso sim é racismo, isso sim é ser vítima de racismo. Dou outro exemplo: racismo é ouvir de um branco que, por mais bem vestida e instruída que sejas, o teu lugar será sempre na ala dos criados. Um branco escurecer artificialmente a cara para ir a um baile de máscaras não é racismo, é politiquice, hipocrisia e overdose de suscetibilidade.
A impressão que tenho é que, nos dias que correm não se pode dizer, fazer, pensar ou até respirar sem ferir alguma suscetibilidade alheia. Sinceramente, já não há paciência. É tanta suscetibilidade narcisista, supérflua e artificial que situações verdadeiramente relevantes acabam ofuscados por pseudocasos, fomentados por quem deseja ver o circo pegar fogo, por quem se sente realizado toda vez que tem oportunidade de brincar de caça às bruxas.
O papel de carrasco que antes a história reservou à Inquisição agora é autoreclamado por todo aquele que se sente, em plena faculdade da sua prepotência e "achismo", no dever moral de criticar, julgar, condenar, apedrejar, ostracizar, humilhar, desmerecer. É deprimente, decadente e preocupante o crescendo de almas encardidas que se acham no direito de apontar o dedo aos outros, como se deuses fossem, e não meros mortais, mais pecadores que Judas.
A essas criaturas só tenho a dizer: tomem conta das vossas vidas, façam por serem melhores humanos, pessoas mais dignas, humildes, virtuosas e solidárias. Hoje és tu a apontar o dedo, amanhã provavelmente serás tu o alvo do dedo alheio. Como diz o dito popular, quando apontamos o dedo a alguém, pelo menos outros três apontam na nossa direção.
Pensem nisso antes de se autoindigitarem polícia da moral e do comportamento alheio. À opinião todos nós temos direitos; só que essa liberdade de expressão não dá a nenhum de nós o direito de cruxificar os outros. Na ausência de algo construtivo para dizer, façamos um favor a nós mesmos, e aos outros: guardemos para nós essa opinião.
O racismo é coisa séria, pelo que só à sua vítima deve ser dado legitimidade para se pronunciar sobre. Não usem, muito menos abusem, da palavra, peço-vos.
Por hoje é tudo, voltarei na quinta com um assunto mais leve, prometo. Até lá aquele abraço amigo de sempre.
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